A primeira vez que se viram
foi em fevereiro, numa quinta-feira, à noite, e chovia, muito. Disputaram uma
vaga em um estacionamento de um shopping. Ambos sós e agitadíssimos. A idéia, e
de ambos, era de uma rápida passagem por lá para comprar um presente, ela para
um amigo e ele para uma amiga. Ele passou da vaga porque faria a manobra de ré.
Ela, que vinha logo atrás, avançou o seu carro de frente direto na vaga. Sem se
importar com ele, com idas e vindas, para frente e para trás, conseguiu ajeitar
o carro como mandam os regulamentos. Ele, por sua vez, deu ré e emparelhou seu
carro com o dela tão próximo que, pouco mais, os retrovisores laterais de um e
de outro teriam se chocado e, de tal forma, que ela não conseguiria abrir a
porta para sair. Ocorre que a vaga era paralela a um paredão e, por força disto
não havia também como ela sair pela porta do lado do passageiro. Ele ligou o
pisca-pisca, e com o olhar fixo à frente, manteve-se impassível. Ela, aos
gritos e com o vidro semi-aberto clamava que ele retirasse o carro para que ela
pudesse sair. Ao lado do carro dele as pessoas trafegavam em seus carros sem
dificuldade, mas com alguma curiosidade e até apreensão, face aos tempos de
insegurança. Passados alguns minutos ela calou-se. Ele abriu o vidro do lado do
passageiro e, pela primeira vez olhou para ela. Como podia ter feito aquilo com uma mulher? Ela, por sua vez, olhou
para ele e com o ímpeto de gritar o pior palavrão de seu repertório, sem
entender não o fez. Ao contrário, com a voz mansa, disse apenas: por favor... Ele ligou o carro e saiu
vagarosamente à procura de outra vaga. A chuva se limitava agora a poucos
pingos esparsos.
A segunda vez que se viram foi
em abril, numa quarta-feira, à noite, num cinema. As luzes já haviam se apagado
quando entraram na sala de projeção e iniciavam as mensagens publicitárias. Ele
estava acompanhado e ela também. Ele localizou duas poltronas e, de repente e
bruscamente, ela passou à frente dele puxando pelas mãos o acompanhante e foi
se sentar na poltrona que ele havia escolhido. À frente, exatamente à frente
dela, havia dois lugares vagos. Ele acomodou-se ali, à frente dela. Sentou-se e
procurou ficar com o tronco bem erguido de tal forma a dificultar a visão de
quem estava imediatamente atrás dele, no caso, ela. Logo que ele se ajeitou,
comentou com o acompanhante: que absurdo;
como alguém pode ser tão mal educado? Coisas
assim. E, por não haver mais dois lugares contíguos na sala, ela permaneceu
ali. Quando o filme estava para começar, ela tomou coragem e colocou a mão
direita sobre o ombro dele. Ele se virou para ela e, com a sensação de já ter
visto aquele rosto antes, disse: o que
foi? Ela corou-se e foi tomada por
um calafrio que percorreu o corpo inteiro. Pensou, então, em comentar com o
acompanhante: é o cara do shopping,
mas não o fez. Ao contrário, com a voz mansa, disse apenas: por favor... Ele deixou o corpo
escorregar de tal sorte a ficar com a cabeça apoiada na poltrona, e assim
permaneceu até o filme terminar. Ao saírem, ela foi por um lado da carreira de
poltronas e ele pelo outro.
A terceira vez que se viram
foi em junho, numa segunda-feira, de manhã, bem cedo. Ele acomodou-se na
poltrona 7A do avião para uma viagem a trabalho. Estava de cabeça baixa, lendo
a revista de bordo quando: senhor, o
senhor se enganou de assento. Essa
mulher de novo, não é possível! pensou. Tirou do bolso o cartão de
embarque, colocou o dedo indicador no número do assento, estendeu o braço em
direção a ela para que visse, e não disse palavra. Guardou o cartão de embarque
novamente e voltou à sua revista de bordo. Ela, assustadíssima, afinal: que diabo, esse cara de novo! Foi ao
encontro da comissária de bordo para procurar resolver a questão. Pouco depois,
a comissária: senhor, por um equívoco da
companhia, infelizmente foi processado o mesmo assento, o senhor se importaria
de mudar de lugar? Ele não respondeu e continuou lendo a revista. Percebeu
que ela então se aproximou da comissária de bordo e com a mesma voz mansa,
disse apenas: por favor... Ele,
dirigindo-se à comissária: para qual
assento eu devo ir? 23C, senhor, obrigada. Ele pegou a valise no
compartimento de bagagens e, sem olhar para ela, foi para os fundos do avião.
No destino não se encontraram mais, pelo menos ali e naquele dia.
A quarta vez que se viram foi
em setembro, num sábado, à noite. Ele aproveitou o feriado prolongado e
resolveu passar uns dias em Buenos Aires. Viajou na quinta-feira e no sábado
foi jantar com uns amigos em um restaurante no Porto Madero. Não é comum, mas
por alguma razão, ele começou a sentir uma indisposição e uma forte dor de
cabeça. Pediu desculpas e disse aos amigos que iria para o hotel. Ao sair,
observou que havia um único táxi no ponto. Quando se dirigia para tomá-lo, saiu
do mesmo restaurante uma mulher correndo à sua frente em direção ao mesmo
carro. Ei, señorita, éste táxi es mio!
Quando ela se voltou e ele fixou os olhos nela: pelo amor de Deus, não é possível! Ela ficou estupefata. Teve
ímpetos de voltar ao restaurante e desistir de buscar o celular que havia
esquecido no hotel. Mas, não. Dirigiu-se ao carro e, abrindo a porta, com a
mesma voz mansa, disse apenas: por
favor...
A quinta vez que se viram foi
em dezembro, num domingo, à tarde. Ele adquirira recentemente o hábito de andar
de bicicleta às tardes de domingo, no parque. Perguntava-se por que só agora
havia descoberto tal prazer. Tinha já pedalado o suficiente e resolveu voltar
para casa, tomar um bom banho e encontrar-se com amigos. Absorto na decisão
saiu subitamente dos limites da ciclovia para tomar o rumo de casa, quando foi
violentamente atingido e lançado fora da bicicleta por outra conduzida por uma
ciclista desatenta, que não percebeu a manobra brusca que ele havia feito. As
bicicletas foram para um lado e ele se viu caído de bruços no chão com uma
mulher sobre ele. Você, de novo?!!! Ela
levantou-se rapidamente, desvencilhando-se dos braços dele e ambos, não
acreditando, foram socorridos pelas pessoas que circulavam pelo local. Depois,
cada um pegou sua bicicleta e tomou seu rumo. Ela, que estava com amigos, pensou
em comentar com eles, mas não o fez.
A sexta vez que se viram foi
em fevereiro, numa quinta-feira, à noite, e chovia, muito. Disputaram uma vaga
em um estacionamento de um shopping. Ambos sós e agitadíssimos. A idéia, e de
ambos, era de uma rápida passagem por lá para comprar um presente, ela para um
amigo e ele para uma amiga. Ele passou da vaga porque faria a manobra de ré.
Ela, que vinha logo atrás, avançou o seu carro de frente direto na vaga. Sem se
importar com ele, com idas e vindas, para frente e para trás, conseguiu ajeitar
o carro como mandam os regulamentos. Ele, por sua vez, deu ré e emparelhou seu
carro guardando distância para com o dela, de tal maneira que era impossível a
ela abrir a porta e sair do carro.
Ela abaixou parte do vidro e
quando viu que era ele, aguardou o que ele iria fazer. Ele abaixou o vidro do
lado do passageiro e disse: entre! Ela: de
jeito nenhum! Ele abriu a porta do passageiro e insistiu: entre, te deixo na portaria do shopping e
depois procuro outra vaga. Não precisa, disse ela. Ele, com a fala mansa,
disse: por favor...
Depois disso já foram vistos
algumas vezes juntos. Parece que eles têm procurado conciliar agenda para
viajarem juntos a trabalho, têm ido quase sempre às quartas-feiras a cinema, e
foram vistos, lado a lado, passeando de bicicletas no parque em várias tardes
de domingo. Vêm planejando descansarem um fim de semana juntos, provavelmente
em Buenos Aires.
Ao acaso, que nos impõe o outro, concessão ou resistência, harmonia ou
conflito, tolerância ou beligerância, solidão ou convívio?
Amei.
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